quarta-feira, 27 de maio de 2015

NE ME QUITTE PAS - "O AFETO QUE SE ENCERRA"

O bom design deve ser para sempre (1)


          Quando assistimos filmes sci-fi, como o recentemente lançado Interestelar, onde os robôs Tars e Case expressam, além da inteligência artificial, sentimentos sutis; poderíamos extrapolar e perguntar: “o que todos os objetos que nos cercam diriam, caso pudessem falar?”


          Supostamente impregnados pela processo de criação da humanidade, teriam eles mantido alguma alma secreta? Algum tipo de “afeto que se encerra”, à espera do momento certo para expressá-lo?

         Pois bem, na minha fantasia afetiva, os objetos refletem o amor que lhes dedicamos. É como se existisse uma transferência psicanalítica à la Freud. Projetamos nossos desejos, anseios, necessidades e amor nesses objetos, que por sua vez nos trazem em retorno, entre outras coisas, seu calor e companhia.

          Muitos, na defensiva, dirão – que pensamento irracional! Objetos não falam! Outros, por sua vez, irão concordar de imediato, pois são aqueles que abraçam árvores, dormem com ursinhos de pelúcia ou mesmo, numa forma mais sofisticada de adoração, são colecionadores.


           Seriados americanos tratam dos horders, ou acumuladores, pessoas que juntam a maior quantidade de itens e quinquilharias possíveis, nunca dividindo-os, vendendo-os ou mesmo usando-os.

           Já os colecionadores são igualmente acumuladores, mas possuem certa organização ou sistemática na escolha dos objetos. Eles acumulam objetos “puros”, sem função prática, aos quais possuem. Esta posse/paixão, transforma o discurso cotidiano funcional em discurso erótico amoroso inconsciente, uma forma de compensação por desejos sexuais não realizados (diriam os psicoanalistas freudianos).



            Encontramos, no nosso dia a dia, estes dois tipos de atitude em diferentes intensidades.

          Outra categoria são as pessoas que são classificadas como consumistas compulsivos (oneomaníacos). Necessitam estar up to date com o que chamam de novo. Para tanto, estão sempre à caça de produtos que, na maioria das vezes, descartam por os terem comprado num impulso, para depois se arrependerem ou se enjoarem.



           Daqui damos um salto para a questão da publicidade e para as possíveis razões para o consumo. De um lado, encontramos objetos produzidos em grande série que, como todos sabemos, têm sua vida útil encurtada (obsolescência programada) segundo a política industrial vigente, durando “exatamente” até o dia anterior da expiração de sua garantia. Eles seguem a moda sendo, portanto, efêmeros na maioria. De outro lado, temos os objetos de pequena série, ou mesmo modelos ou peças únicas, com qualidade infinitamente superior e durabilidade idem. Em ambos os casos, no entanto, existe o descarte.

          E como age a publicidade? De que forma ela entra neste cenário?

          A publicidade, historicamente falando, teve seu início com artistas e designers, por suas habilidades em ilustração. Estes foram chamados pelas indústrias com a função de divulgar os produtos e promover sua venda, através de seus desenhos perfeitos. A partir daí houveram distorções e a publicidade deixou de fornecer informação isenta e passou a ser persuasiva e tendenciosa, como bem retratam os livros “Subliminal Seduction e “A era da Manipulação”(2), entre tantos outros que tratam do assunto. Como exemplos podemos citar: cremes femininos que promovem a eliminação total das rugas em dois tempos, remédios que emagrecem em uma semana, produtos oferecidos pela técnica do R$ 0,99, produtos como comidas, bebidas, cigarros, jóias e roupas, apresentados por artistas ou pessoas influentes, propagandas de yogurt que condicionam o bom funcionamento do intestino ao aumento da vontade da transa sexual nas mulheres, desodorantes que duram 48 ou mais horas. Batons que inflam os lábios, lápis que esculpem as sombrancelhas, sombras de olhos que imitam o couro, coleções de roupas "criadas" pelas starlets Kardashians, perfumes que fazem você ser lembrado para sempre, cremes que trazem de volta sua pele de bebê, e assim por diante.


           Nós, usuários/consumidores, mesmo os que negam o poder do condicionamento reflexo, assentimos em crer na publicidade porque de alguma forma ficamos sensibilizados com a dedicação e interesse das empresas em se ocuparem conosco, ora fazendo ofertas especiais ora dando prêmios. Esta inversão de valores faz com que muitas vezes um produto não seja julgado, pela mass midia, pelo seu valor intrínseco, mas sim pelo “cuidado e respeito” que a empresa dá ao público, desta forma sensibilizando-o e fazendo-o acreditar mais na marca do que no produto.           É claro que existem, por outro lado, empresas sérias, transparentes e o público está cada vez mais crítico e avaliador dos produtos que compra, usando para isso ferramentas de avaliações on line e sites de reclamações. O Branding (3) tem ajudado a criar esta transparência nas empresas, administrando a imagem da mesma. É um trabalho de construção e gerenciamento para o surgimento de uma marca forte e uma linha de produtos ou serviços, estabelecendo um relacionamento sadio com o mercado alvo.
           

         Independentemente desta confiança inicial, que acaba por eleger certos produtos como superiores, existe uma certa relutância do consumidor em relação à manutenção, por muitos anos, de certos objetos, mesmo que estes possam estar funcionantes, satisfazendo plenamente nossas necessidades utilitárias. É o preço e o jogo de uma sociedade frágil, que se move, parece transformar-se, mas pouco em sua essência muda. Álibi do progresso tecnológico e da moda, parte do custo que temos e, muitas vezes queremos pagar.           

         E por quê?           

        O mercado para se mover oferece sempre o “novo”, mesmo que não seja tão novo assim; uma estratégia para vender sempre mais em resposta ao nosso desejo que parece insaciável (vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais…). Este mercado tem uma pretensa produtividade que não leva a qualquer modificação estrutural. Assim, o consumidor defrontado com o “progresso” e a moda, sucumbe ao consumo, tendendo a descartar o objeto anterior (velho). Se observarmos a publicidade de carros, a palavra “novo” sempre aparece.


           Aqui, percebe-se a fetichização da juventude. Tudo o que é velho incomoda, é feio, não excita. Um pensamento que remete igualmente à eterna busca da juventude, onde milhares de pessoas se rendem às melhorias estéticas rejuvenecedoras, invasivas ou não. É o mito grego de Hebe (Juventa), a deusa da eterna juventude, que aqui identificamos. Neste caso, extrapola-se para o mundo dos objetos. O consumo em excesso é um cúmplice para a nosso vazio interior, que se nutre dele - uma outra característica de nossa civilização industrial.

         Os consumistas, impelidos por uma ilusão fundamental, creem que tudo o que possuem não servem para torná-los válidos socialmente. É uma ideologia que descarta nosso dons naturais, para fazer-nos comprar e ostentar produtos e marcas que nos servem de substitutos.

O DESCARTE

          Atualmente, pensa-se em sustentabilidade, em produtos criados para não comprometer o futuro do planeta - mais duradouros, menos descartáveis. Tarefa árdua para o governo, industriais, empresários e designers industriais envolvidos com a consciência sobre o planeta (mas este assunto fica para outro artigo).


            Mas por que ainda continuamos gerando lixo, um dos maiores problemas do planeta? Não somente embalagens como sacolas plásticas, garrafas PET e vidros, mas também eletro-eletrônicos, roupas e mobiliário? Por que os celulares aumentaram de tamanho novamente? Por que usamos carros potentes do tipo 4X4, em ruas urbanas impossíveis de se trafegar? Por que usamos carros tipo SUVs que não cabem em nenhum lugar? Por que usamos relógios de pulso se agora temos celular? Por que adotamos um Apple Watch? Por quê, por quê, por quê?…”


            Dezenas de bens como estes são descartados, diariamente, em todas as partes do mundo, mesmo em lugares mais impensáveis como, por exemplo, no deserto. Será que estamos considerando os 5Rs (Repensar, Reduzir, Recusar, Reutilizar e Reciclar) nos nossos hábitos de consumo?


           O design tem tentado responder a perguntas como esta, ainda sem respostas plausíveis. Faltaria uma política governamental ou aprendizado social? Ou mesmo a formação de comunidades colaborativas e novas formas de associações entre produtores e usuários? Carlo Vezzoli e Ezio Manzini (3), oferecem uma visão muito abrangente sobre este tema.


                      OUTRAS FORMAS INCONFESSAS DE DESCARTE….”passe o presente adiante”

          Os chamados regifters, isto é, aqueles que têm o hábito compulsivo de quase nunca gostarem dos presentes que recebem, realizam uma forma inconfessa ou disfarçada de descarte, passando seus mimos adiante para outra pessoa. Ao invés de permanecerem com algo que não é exatamente o que desejam, se sentem obrigados a se livrarem dele. O problema principal é que muitas vezes a outra pessoa acaba descobrindo, por uma razão ou outra. Poucos passam ilesos.



A NOSTALGIA CULTURAL

          Revistas dedicadas à arquitetura de interiores - Architectural Digest, Interior Design e outras, revelam certas tendências que vem se destacando, principalmente, no mercado europeu, no arranjo doméstico – nos móveis, objetos, jóias, tapeçaria etc. Uma delas é a preservação de peças de mobiliário modernista assinado (ex. Carlo Molino, Marcel Breuer, Le Corbisier, Mies van der Rohe) (4) no seu estado de envelhecimento natural, (pintura desgastada, madeira machucada, metal descascado, couros, tecidos e tapeçarias poídas) e mantidas, igualmente, sem restauro, juntamente ao lado de outras peças contemporâneas novas. Outra ocorre nas peças de mobiliário mais antigas, dos séculos XV, XVI, etc., igualmente mantidas intactas. Outra, ainda, são as antiguidades erzatz, como por exemplo, tapetes de estilo oriental, produzidos nos dias de hoje, imitando o desgaste dos tempos, utilizando estampas inspiradas nas decorações dos tecidos brocados com efeito “consumido”.



tapete comtemporâneo imitando antigo

           O primeiro e segundo casos explicam-se, caso tenham sido adquiridos e não herdados, pelo interesse na prova da autenticidade, mostrando o valor único do objeto como representante do tempo, da história ou por nostalgia e amor. Pretende-se deixar intocada a sua origem. Aparentemente, nestes dois casos, existe uma atitude mais conservadora. O objeto vai fazer parte dos “retratos de família”. O terceiro caso é a busca pelo símbolo de status, pela posição social, pela hereditariedade não herdada mas desejada e sugerida.

          Muitos objetos são por nós amados profundamente e não querermos que eles morram; outros acabam morrendo com a nossa permissão. Radicalismos à parte, devemos manter um foco ético em todas as nossas atitudes e atividades. Viver no estilo primitivo pode nos levar ao desânimo. Viver no consumismo desenfreado, nos levará ao narcisismo e solidão. A resposta está na fluidez, buscando pela nossa liberdade e individualidade, dentro de uma nova moral, filha da “modernidade líquida”.(5)

          A questão é que amamos nos cercar de objetos mas não usamos nossa racionalidade para verificarmos se os necessitamos, se são úteis, se os queremos para sempre. Neste contexto, observamos um comportamento paranóico. Inicialmente desejamos, depois rejeitamos. Compramos para depois descartar.

          Se os objetos, supostamente, falassem, provavelmente, nos diriam ne me quitte pas.(6)



Créditos:

Autora: Suzana Mara Sacchi Padovano

Data: 26/05/2015

Fotos:
pinterest.com, themetapicture.com, sarahwilson.com.au,everydayhealth.com, vogue.com, architecturaldigest.com, casa.abril.com.br/casa-claudia, m.flicker.com, defharo.com, dribbble.com, flickr.com/photos/evanleavittphotography/, Photographer Bobby Neel Adams.

 





(1) Key, Wilson Bryan. Subliminal Seduction. Mass Market Paperback: Estados Unidos, 1974 /The Age of Manipulation. Madison Books: Estados Unidos, Boston, 1989

(2) Branding, ou brand management, é uma atividade multidisciplinar que trata da construção e do fortalecimento de marcas ou de seu gerenciamento. Branding envolve, essencialmente, disciplinas como marketing, planejamento, comunicação e design.

(3) Vezzoli, Carlo, Manzini, Ezio. Design for Environmental Sustainaility. Londres: Springer, 2008.

(4) Carlo Molino armchair – Zanotta Edition, 1995

(5) Bauman, Zygmund. Modernidade Líquida. Inglaterra: Jorge Zahar Editor Ltda, 2001

(6) não me abandone
(7) Ne me quittes pas (não me deixe) - "o afeto que se encerra" (frase do hino nacional brasileiro).

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