segunda-feira, 6 de maio de 2019

O TERROR DE MORRER E OS OBJETOS FETICHE



Desenho: Suzana M. Sacchi Padovano


O TERROR DE MORRER E OS OBJETOS FETICHE

Este artigo aborda os aspectos ontológicos do terror de viver, de morrer e do fenômeno da transferência psicanalítica que ocorre através da fetichização dos seres. Investiga esta mesma transferência no mundo dos objetos fetiche.


Falar da vida e da morte é algo que pode parecer assustador. De fato o é. A morte inspira medo desde o momento em que temos conhecimento e consciência dela. A maioria das atividades humanas tenta evitar a fatalidade da morte; seja através da religião, que nos promete a vida eterna e o paraíso; seja através da ciência, com estudos cada vez mais avançados dentro da biotecnologia.

Um pensamento budista nos instrui pensarmos no fato da morte todos os dias e não evitá-lo, pois assim, quando ela chegar, estaremos preparados. Sob o ponto de vista da psicologia, as neuroses de angústia e diferentes estados fóbicos ou até depressivos suicidas demonstram no indivíduo o sempre existente medo da morte e seu enfrentamento.

Este temor ocorre como sentimento de autopreservação, escondido sob o manto da vigilância. Em geral, vamos vivendo sem pensar muito no nosso fim, com o piloto automático ligado, como se fossemos fisicamente imortais (vide o sucesso dos filmes dos super heróis da Marvel e DC Comics). Sabemos que iremos morrer um dia (hoje atualizados pelos cientistas, que logo após nascermos inicia-se o processo de envelhecimento das células) mas temos sempre esperança que a morte vai levar muito tempo para chegar e vamos aproveitando a vida, reprimindo este pensamento negativo e amedrontador – pela nossa ignorância a respeito do que ela, de fato, seja. Muitos de nós, dependendo de nossa cultura, já passamos por experiências de quase morte, ou mesmo sofremos cirurgias nas quais fomos anestesiados e ao voltarmos à consciência dizemos erroneamente – “foi como morrer, não senti nada(?)”.

Como diria o escritor Maurice Blanchot: “Se é verdade que a experiência da morte atravessa a existência humana do início ao fim, talvez, a morte ao nosso alcance seja o que torna a vida possível, o que propicia ar, espaço, movimento e alegria”.

Afirmam os psicanalistas que o conceito de morte “é um símbolo complexo, cujo significado irá variar de uma pessoa para outra e de uma cultura para outra”. E não só, varia de intensidade dependendo do processo evolutivo de cada um.

Pergunto: “Como o ser humano transmuta e supera este temor da morte?

Existem algumas possibilidades: A primeira delas vem do conceito judaico–cristão, na crença da imortalidade com a continuação do nosso ser na “eternidade” – na dimensão vulgarmente chamada de céu. Embalar esta crença, faz com que o homem saia do seu paradoxo existencial. O ser humano tem uma identidade que o destaca de outros seres da natureza. Possui um nome e uma história de vida. Possui inteligência criativa que o impulsiona à pesquisa sobre si mesmo, o universo, o infinito e o átomo. Tudo isso o faz sentir-se como um deus poderoso. Entretanto, em contraposição, sabe que irá tornar-se pó. Este é o paradoxo com o qual deve lidar. Na sua dualidade, ele se encontra dentro e fora da natureza, possuindo um corpo de carne que também o faz viver, sentir dor e morrer. Assim, deve desafiar este temor da morte, resultante deste enfrentamento constante, mesmo tentando abafá-lo de outras formas, diferentemente dos animais inferiores onde esta consciência é substituída pelos instintos.

Cito, Kierkegaard à este respeito:

Toda a ordem das coisas me enche de uma sensação de angústia, desde o mosquito até os mistérios da encarnação; tudo me é inteiramente ininteligível, em especial minha própria pessoa. Grande, e sem limites é a minha tristeza (…)”.

A segunda possibilidade, para a superação do terror da morte, surge com o conceito do romantismo. Gerado sob o impacto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, de fins do século XVIII, o romantismo surgiu no início do século XIX. Aqui, o ser humano perdeu-se de Deus e portanto a transferência ocorre voltando-se para outro ser, desta vez “real”, que se torna objeto de adoração e amor. A espiritualidade sai do Céu e vem à Terra.

A transferência, seja religiosa ou não, está ligada às razões do viver. Nascemos e crescemos e ao adquirirmos consciência, nos perguntamos, como se preocupava Kant, qual é o nosso papel neste mundo. Quem somos? Por que estamos aqui? Qual é a nossa missão?

O objeto da transferência torna-se, portanto, uma fetichização para os anseios do ser humano no que se refere à sua sobrevivência e imortalidade. Mas o que significa transferência? Quais são seus aspectos? Como e quando ela ocorre?

Tratados de psicanálise a explicam. Segundo Alfred Adler, a transferência “é basicamente uma manobra ou tática pela qual o ser humano procura perpetuar o seu estilo de existência, que depende de uma continuada tentativa de despir-se do poder e colocá-lo nas mão do “outro”. Para Carl G. Jung, a transferência é “o fascínio por alguém ou algo a quem tentamos nos entregar, que pareça possuir todas as qualidades que não conseguimos concretizar em nós mesmos”. Jung percebeu que a compreensão da criação de símbolos era crucial para o entendimento da natureza humana. Ele, então, explorou as correspondências entre os símbolos que surgem nas lutas da vida dos indivíduos e as imagens simbólicas religiosas subjacentes e sistemas mitológicos e mágicos de muitas culturas e eras.

Para Erich Fromm: “a transferência reflete a alienação do homem”. Ele explica que a transferência, sob o ponto de vista psicanalítico, ocorre quando o homem escolhe um objeto (aqui falando sobre pessoas) no qual projeta todas as suas qualidades humanas: seu amor, sua inteligência e sua coragem, para superar seu sentimento de vazio interior e impotência. “Ao submeter-se a esse objeto, ele se sente em contato com suas próprias qualidades. Perder este objeto significa o perigo de perder a si mesmo. Esse mecanismo - a adoração idólatra de um outro ser, baseado no fato da alienação individual, é o dinamismo central da transferência, aquilo que dá à transferência sua força e sua intensidade.”

A transferência sempre é uma forma de regressão, pois adota um mundo adulterado, de controle automático e acrítico das circunstâncias externas. Mostra uma profunda rebelião contra a realidade e a insistência na zona da imaturidade. Ela pode ser considerada uma forma de fetichismo que exerce um controle limitado e ancora os nossos problemas.

Fetiche é uma palavra originada da palavra francesa fétiche e tem dois significados gerais:
1. objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto
2. objeto inanimado ou parte do corpo considerada como possuidora de qualidades mágicas ou eróticas.

Um fetiche pode estar relacionado com algo místico, representando um amuleto ou um ídolo, com poderes mágicos ou sobrenaturais. Alguns povos e tribos africanas possuem certos objetos fetiches, que são adorados pelo povo.

Existe igualmente o sentido do “fetichismo da mercadoria”, conceito atribuído a Karl Marx, que é uma idéia central do sistema econômico criado por ele. Marx indica que graças a esse fenômeno psicológico e social, os objetos /“produtos” parecem ganhar vontade própria sendo alvo de culto pelo ser humano. Desta forma, os indivíduos se comportam como objetos e os objetos se comportam como pessoas.

Karl Marx baseia-se na historia do personagem bíblico Moisés, que entre tantas aventuras, subiu ao Monte Sinai para se encontrar com Deus. Nesse momento, o povo cansado de esperar pela terra prometida, juntou seu ouro para criar a estátua de um animal, possivelmente um bezerro, para depois adorá-lo como um novo deus. Neste caso, o “bezerro” de ouro pode ser classificado como um objeto fetiche.

Eu poderia acrescentar que o mesmo fenômeno da transferência ocorre, igualmente, com os objetos materiais que nos cercam - produtos, aparelhos, gadgets, enfim os objetos do cotidiano.

O paradoxo da vida e o enfrentamento do medo da morte

Com a sociedade industrial tudo se transformou radicalmente e proliferaram-se os objetos criados pelo homem. Surgiram novas formas de produção, de consumo, de dependências e necessidades. O objeto tornou-se um mediador social e dotado de funções – o de ser utilizado e o de ser possuído. O estudo da sintaxe do objeto mostra que ele é arte, colecionável, presente e gadget, desempenhando um papel de protagonista na relação homem-objeto.

Os objetos desempenham um papel de reguladores de nossas angústias, nos tranquilizando afetivamente. O indivíduo teme sair para o universo poderoso que está “lá fora” e onde ele percebe o caos. Teme poder concretizar sua individualidade e teme a liberdade. Pretende a simbiose do ventre da mãe protetora. O fato é que, devido à inquietação do ser humano sobre a fatalidade da sua condição humana, ele busca sua transcendência. Portanto a essência da transferência para um objeto é transcender a própria mortalidade. Daí, estamos a um passo de fazer a mesma transferência, antes religiosa e depois para o “outro”, para os objetos que nos cercam ou que desejamos que nos cerquem. Sem percebermos, os mesmos mecanismos citados anteriormente, aqui ocorrem com os objetos-paixão ou objetos marginais abstraídos de sua função, também qualificados como objetos de coleção.

Neste caso, o objeto toma o sentido do ser amado, como algo criado por Deus e portanto eterno ou eternizável dentro da perspectiva da transferência.

A morte não deve ser confundida com uma passagem ou episódio mas ela envolve um processo que acompanha o ser humano durante todo o seu curso vital.

Relembrando as primeiras civilizações humanas, cito o nascimento da civilização egípcia, entre aproximadamente 4.000 e 3.000 a.C, onde esta sociedade era marcada por uma profunda religiosidade. Politeístas, adoravam diversos deuses: Amon-Ra, protetor dos faraós; Ptah, protetor dos artesãos; Thot, deus da ciência e protetor dos escribas; Ambis, protetor dos embalsamamentos; Maat, deusa da justiça, entre outros. Acreditavam em vida após a morte e no retorno da alma ao corpo, cultuavam os mortos e desenvolviam técnicas de mumificação para autopreservação.

 

Era comum que os faraós e as pessoas de maior poder aquisitivo fossem enterradas com dezenas de objetos de uso particular; como jóias, roupas, perfumes, mobília, até mesmo animas de estimação e escravos. Tudo isso era devidamente guardado em suas tumbas. Os egípcios acreditavam que a morte não era o fim da jornada. Sendo assim, eles teriam a necessidade de levar consigo todos os seus pertences em sua longa viagem rumo à outra vida.

 

Este costume mostra o apego dos egípcios aos seus objetos do dia a dia, que tinham a função de assegurar a continuidade existencial. Essa cultura perpetuou-se entre muitos outros povos que vieram a seguir e mesmo nossos contemporâneos levam consigo, por crença ou superstição, algum objeto querido enterrado junto ao seu corpo; como óculos, correntes e anéis, dependendo de sua mitologia pessoal.

 

Há portanto a transferência/ transcendência do indivíduo, em sua fantasia, para estes objetos ora míticos e fetichizados, assegurando ao indivíduo um discurso para si mesmo do seu valor perene.

 

Devemos lembrar que este discurso abrange tanto objetos contemporâneos quanto os objetos antigos e portanto colecionáveis.

 

Quem não conhece aquele apego à uma poltrona que pertenceu ao seu pai? Um relógio de bolso que foi do seu avô? Uma caixa de pó de arroz antiga de sua mãe? Canetas, óculos, pentes, leques, cristaleiras, escrivaninhas, cômodas; uma parafernália que muitas vezes nos toca mais fundo do que um novo iPhone ou uma TV ultra moderna  - com seus dias contados em nossas vidas. Eu mesma possuo um vitrine cheia de objetos antigos e seminovos, que celebram e perpetuam a minha existência e de toda a minha família.

 

As mitologias dos objetos se contrapõem e se complementam. A mitologia do objeto moderno carrega a ansiedade pelo futuro – o estar sempre à frente, ter poder e superioridade. Já a mitologia do objeto antigo, segundo Baudrillard, carrega a nostalgia das origens. Ambas sustentam o indivíduo a enfrentar o enigma da morte. A do objeto moderno procura valores atemporais e superação do mundo. A do objeto antigo, uma volta à célula mãe, à natureza, aos conhecimentos primitivos, às divindades, que por sua vez fantasiam a prova de sua eternidade.

 

 

Bibliografia


KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor, 1843.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia, 1844.
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano, 1849.
WAHl, Jean Andre. Études kierkegaardiennes, 1938.
MARX, Karl. O Capital, 2005.
Adler, Alfred. The Collected Clinical Works of Alfred Adler, 1898.
JUNG, Carl G. “Sete Sermões aos Mortos" e "A Função Transcendente"; estudo sobre os gnósticos, 1916.  
FROMM, Erick. To Have or to Be1976.

 


quarta-feira, 27 de maio de 2015

NE ME QUITTE PAS - "O AFETO QUE SE ENCERRA"

O bom design deve ser para sempre (1)


          Quando assistimos filmes sci-fi, como o recentemente lançado Interestelar, onde os robôs Tars e Case expressam, além da inteligência artificial, sentimentos sutis; poderíamos extrapolar e perguntar: “o que todos os objetos que nos cercam diriam, caso pudessem falar?”


          Supostamente impregnados pela processo de criação da humanidade, teriam eles mantido alguma alma secreta? Algum tipo de “afeto que se encerra”, à espera do momento certo para expressá-lo?

         Pois bem, na minha fantasia afetiva, os objetos refletem o amor que lhes dedicamos. É como se existisse uma transferência psicanalítica à la Freud. Projetamos nossos desejos, anseios, necessidades e amor nesses objetos, que por sua vez nos trazem em retorno, entre outras coisas, seu calor e companhia.

          Muitos, na defensiva, dirão – que pensamento irracional! Objetos não falam! Outros, por sua vez, irão concordar de imediato, pois são aqueles que abraçam árvores, dormem com ursinhos de pelúcia ou mesmo, numa forma mais sofisticada de adoração, são colecionadores.


           Seriados americanos tratam dos horders, ou acumuladores, pessoas que juntam a maior quantidade de itens e quinquilharias possíveis, nunca dividindo-os, vendendo-os ou mesmo usando-os.

           Já os colecionadores são igualmente acumuladores, mas possuem certa organização ou sistemática na escolha dos objetos. Eles acumulam objetos “puros”, sem função prática, aos quais possuem. Esta posse/paixão, transforma o discurso cotidiano funcional em discurso erótico amoroso inconsciente, uma forma de compensação por desejos sexuais não realizados (diriam os psicoanalistas freudianos).



            Encontramos, no nosso dia a dia, estes dois tipos de atitude em diferentes intensidades.

          Outra categoria são as pessoas que são classificadas como consumistas compulsivos (oneomaníacos). Necessitam estar up to date com o que chamam de novo. Para tanto, estão sempre à caça de produtos que, na maioria das vezes, descartam por os terem comprado num impulso, para depois se arrependerem ou se enjoarem.



           Daqui damos um salto para a questão da publicidade e para as possíveis razões para o consumo. De um lado, encontramos objetos produzidos em grande série que, como todos sabemos, têm sua vida útil encurtada (obsolescência programada) segundo a política industrial vigente, durando “exatamente” até o dia anterior da expiração de sua garantia. Eles seguem a moda sendo, portanto, efêmeros na maioria. De outro lado, temos os objetos de pequena série, ou mesmo modelos ou peças únicas, com qualidade infinitamente superior e durabilidade idem. Em ambos os casos, no entanto, existe o descarte.

          E como age a publicidade? De que forma ela entra neste cenário?

          A publicidade, historicamente falando, teve seu início com artistas e designers, por suas habilidades em ilustração. Estes foram chamados pelas indústrias com a função de divulgar os produtos e promover sua venda, através de seus desenhos perfeitos. A partir daí houveram distorções e a publicidade deixou de fornecer informação isenta e passou a ser persuasiva e tendenciosa, como bem retratam os livros “Subliminal Seduction e “A era da Manipulação”(2), entre tantos outros que tratam do assunto. Como exemplos podemos citar: cremes femininos que promovem a eliminação total das rugas em dois tempos, remédios que emagrecem em uma semana, produtos oferecidos pela técnica do R$ 0,99, produtos como comidas, bebidas, cigarros, jóias e roupas, apresentados por artistas ou pessoas influentes, propagandas de yogurt que condicionam o bom funcionamento do intestino ao aumento da vontade da transa sexual nas mulheres, desodorantes que duram 48 ou mais horas. Batons que inflam os lábios, lápis que esculpem as sombrancelhas, sombras de olhos que imitam o couro, coleções de roupas "criadas" pelas starlets Kardashians, perfumes que fazem você ser lembrado para sempre, cremes que trazem de volta sua pele de bebê, e assim por diante.


           Nós, usuários/consumidores, mesmo os que negam o poder do condicionamento reflexo, assentimos em crer na publicidade porque de alguma forma ficamos sensibilizados com a dedicação e interesse das empresas em se ocuparem conosco, ora fazendo ofertas especiais ora dando prêmios. Esta inversão de valores faz com que muitas vezes um produto não seja julgado, pela mass midia, pelo seu valor intrínseco, mas sim pelo “cuidado e respeito” que a empresa dá ao público, desta forma sensibilizando-o e fazendo-o acreditar mais na marca do que no produto.           É claro que existem, por outro lado, empresas sérias, transparentes e o público está cada vez mais crítico e avaliador dos produtos que compra, usando para isso ferramentas de avaliações on line e sites de reclamações. O Branding (3) tem ajudado a criar esta transparência nas empresas, administrando a imagem da mesma. É um trabalho de construção e gerenciamento para o surgimento de uma marca forte e uma linha de produtos ou serviços, estabelecendo um relacionamento sadio com o mercado alvo.
           

         Independentemente desta confiança inicial, que acaba por eleger certos produtos como superiores, existe uma certa relutância do consumidor em relação à manutenção, por muitos anos, de certos objetos, mesmo que estes possam estar funcionantes, satisfazendo plenamente nossas necessidades utilitárias. É o preço e o jogo de uma sociedade frágil, que se move, parece transformar-se, mas pouco em sua essência muda. Álibi do progresso tecnológico e da moda, parte do custo que temos e, muitas vezes queremos pagar.           

         E por quê?           

        O mercado para se mover oferece sempre o “novo”, mesmo que não seja tão novo assim; uma estratégia para vender sempre mais em resposta ao nosso desejo que parece insaciável (vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais…). Este mercado tem uma pretensa produtividade que não leva a qualquer modificação estrutural. Assim, o consumidor defrontado com o “progresso” e a moda, sucumbe ao consumo, tendendo a descartar o objeto anterior (velho). Se observarmos a publicidade de carros, a palavra “novo” sempre aparece.


           Aqui, percebe-se a fetichização da juventude. Tudo o que é velho incomoda, é feio, não excita. Um pensamento que remete igualmente à eterna busca da juventude, onde milhares de pessoas se rendem às melhorias estéticas rejuvenecedoras, invasivas ou não. É o mito grego de Hebe (Juventa), a deusa da eterna juventude, que aqui identificamos. Neste caso, extrapola-se para o mundo dos objetos. O consumo em excesso é um cúmplice para a nosso vazio interior, que se nutre dele - uma outra característica de nossa civilização industrial.

         Os consumistas, impelidos por uma ilusão fundamental, creem que tudo o que possuem não servem para torná-los válidos socialmente. É uma ideologia que descarta nosso dons naturais, para fazer-nos comprar e ostentar produtos e marcas que nos servem de substitutos.

O DESCARTE

          Atualmente, pensa-se em sustentabilidade, em produtos criados para não comprometer o futuro do planeta - mais duradouros, menos descartáveis. Tarefa árdua para o governo, industriais, empresários e designers industriais envolvidos com a consciência sobre o planeta (mas este assunto fica para outro artigo).


            Mas por que ainda continuamos gerando lixo, um dos maiores problemas do planeta? Não somente embalagens como sacolas plásticas, garrafas PET e vidros, mas também eletro-eletrônicos, roupas e mobiliário? Por que os celulares aumentaram de tamanho novamente? Por que usamos carros potentes do tipo 4X4, em ruas urbanas impossíveis de se trafegar? Por que usamos carros tipo SUVs que não cabem em nenhum lugar? Por que usamos relógios de pulso se agora temos celular? Por que adotamos um Apple Watch? Por quê, por quê, por quê?…”


            Dezenas de bens como estes são descartados, diariamente, em todas as partes do mundo, mesmo em lugares mais impensáveis como, por exemplo, no deserto. Será que estamos considerando os 5Rs (Repensar, Reduzir, Recusar, Reutilizar e Reciclar) nos nossos hábitos de consumo?


           O design tem tentado responder a perguntas como esta, ainda sem respostas plausíveis. Faltaria uma política governamental ou aprendizado social? Ou mesmo a formação de comunidades colaborativas e novas formas de associações entre produtores e usuários? Carlo Vezzoli e Ezio Manzini (3), oferecem uma visão muito abrangente sobre este tema.


                      OUTRAS FORMAS INCONFESSAS DE DESCARTE….”passe o presente adiante”

          Os chamados regifters, isto é, aqueles que têm o hábito compulsivo de quase nunca gostarem dos presentes que recebem, realizam uma forma inconfessa ou disfarçada de descarte, passando seus mimos adiante para outra pessoa. Ao invés de permanecerem com algo que não é exatamente o que desejam, se sentem obrigados a se livrarem dele. O problema principal é que muitas vezes a outra pessoa acaba descobrindo, por uma razão ou outra. Poucos passam ilesos.



A NOSTALGIA CULTURAL

          Revistas dedicadas à arquitetura de interiores - Architectural Digest, Interior Design e outras, revelam certas tendências que vem se destacando, principalmente, no mercado europeu, no arranjo doméstico – nos móveis, objetos, jóias, tapeçaria etc. Uma delas é a preservação de peças de mobiliário modernista assinado (ex. Carlo Molino, Marcel Breuer, Le Corbisier, Mies van der Rohe) (4) no seu estado de envelhecimento natural, (pintura desgastada, madeira machucada, metal descascado, couros, tecidos e tapeçarias poídas) e mantidas, igualmente, sem restauro, juntamente ao lado de outras peças contemporâneas novas. Outra ocorre nas peças de mobiliário mais antigas, dos séculos XV, XVI, etc., igualmente mantidas intactas. Outra, ainda, são as antiguidades erzatz, como por exemplo, tapetes de estilo oriental, produzidos nos dias de hoje, imitando o desgaste dos tempos, utilizando estampas inspiradas nas decorações dos tecidos brocados com efeito “consumido”.



tapete comtemporâneo imitando antigo

           O primeiro e segundo casos explicam-se, caso tenham sido adquiridos e não herdados, pelo interesse na prova da autenticidade, mostrando o valor único do objeto como representante do tempo, da história ou por nostalgia e amor. Pretende-se deixar intocada a sua origem. Aparentemente, nestes dois casos, existe uma atitude mais conservadora. O objeto vai fazer parte dos “retratos de família”. O terceiro caso é a busca pelo símbolo de status, pela posição social, pela hereditariedade não herdada mas desejada e sugerida.

          Muitos objetos são por nós amados profundamente e não querermos que eles morram; outros acabam morrendo com a nossa permissão. Radicalismos à parte, devemos manter um foco ético em todas as nossas atitudes e atividades. Viver no estilo primitivo pode nos levar ao desânimo. Viver no consumismo desenfreado, nos levará ao narcisismo e solidão. A resposta está na fluidez, buscando pela nossa liberdade e individualidade, dentro de uma nova moral, filha da “modernidade líquida”.(5)

          A questão é que amamos nos cercar de objetos mas não usamos nossa racionalidade para verificarmos se os necessitamos, se são úteis, se os queremos para sempre. Neste contexto, observamos um comportamento paranóico. Inicialmente desejamos, depois rejeitamos. Compramos para depois descartar.

          Se os objetos, supostamente, falassem, provavelmente, nos diriam ne me quitte pas.(6)



Créditos:

Autora: Suzana Mara Sacchi Padovano

Data: 26/05/2015

Fotos:
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(1) Key, Wilson Bryan. Subliminal Seduction. Mass Market Paperback: Estados Unidos, 1974 /The Age of Manipulation. Madison Books: Estados Unidos, Boston, 1989

(2) Branding, ou brand management, é uma atividade multidisciplinar que trata da construção e do fortalecimento de marcas ou de seu gerenciamento. Branding envolve, essencialmente, disciplinas como marketing, planejamento, comunicação e design.

(3) Vezzoli, Carlo, Manzini, Ezio. Design for Environmental Sustainaility. Londres: Springer, 2008.

(4) Carlo Molino armchair – Zanotta Edition, 1995

(5) Bauman, Zygmund. Modernidade Líquida. Inglaterra: Jorge Zahar Editor Ltda, 2001

(6) não me abandone
(7) Ne me quittes pas (não me deixe) - "o afeto que se encerra" (frase do hino nacional brasileiro).