segunda-feira, 6 de maio de 2019

O TERROR DE MORRER E OS OBJETOS FETICHE



Desenho: Suzana M. Sacchi Padovano


O TERROR DE MORRER E OS OBJETOS FETICHE

Este artigo aborda os aspectos ontológicos do terror de viver, de morrer e do fenômeno da transferência psicanalítica que ocorre através da fetichização dos seres. Investiga esta mesma transferência no mundo dos objetos fetiche.


Falar da vida e da morte é algo que pode parecer assustador. De fato o é. A morte inspira medo desde o momento em que temos conhecimento e consciência dela. A maioria das atividades humanas tenta evitar a fatalidade da morte; seja através da religião, que nos promete a vida eterna e o paraíso; seja através da ciência, com estudos cada vez mais avançados dentro da biotecnologia.

Um pensamento budista nos instrui pensarmos no fato da morte todos os dias e não evitá-lo, pois assim, quando ela chegar, estaremos preparados. Sob o ponto de vista da psicologia, as neuroses de angústia e diferentes estados fóbicos ou até depressivos suicidas demonstram no indivíduo o sempre existente medo da morte e seu enfrentamento.

Este temor ocorre como sentimento de autopreservação, escondido sob o manto da vigilância. Em geral, vamos vivendo sem pensar muito no nosso fim, com o piloto automático ligado, como se fossemos fisicamente imortais (vide o sucesso dos filmes dos super heróis da Marvel e DC Comics). Sabemos que iremos morrer um dia (hoje atualizados pelos cientistas, que logo após nascermos inicia-se o processo de envelhecimento das células) mas temos sempre esperança que a morte vai levar muito tempo para chegar e vamos aproveitando a vida, reprimindo este pensamento negativo e amedrontador – pela nossa ignorância a respeito do que ela, de fato, seja. Muitos de nós, dependendo de nossa cultura, já passamos por experiências de quase morte, ou mesmo sofremos cirurgias nas quais fomos anestesiados e ao voltarmos à consciência dizemos erroneamente – “foi como morrer, não senti nada(?)”.

Como diria o escritor Maurice Blanchot: “Se é verdade que a experiência da morte atravessa a existência humana do início ao fim, talvez, a morte ao nosso alcance seja o que torna a vida possível, o que propicia ar, espaço, movimento e alegria”.

Afirmam os psicanalistas que o conceito de morte “é um símbolo complexo, cujo significado irá variar de uma pessoa para outra e de uma cultura para outra”. E não só, varia de intensidade dependendo do processo evolutivo de cada um.

Pergunto: “Como o ser humano transmuta e supera este temor da morte?

Existem algumas possibilidades: A primeira delas vem do conceito judaico–cristão, na crença da imortalidade com a continuação do nosso ser na “eternidade” – na dimensão vulgarmente chamada de céu. Embalar esta crença, faz com que o homem saia do seu paradoxo existencial. O ser humano tem uma identidade que o destaca de outros seres da natureza. Possui um nome e uma história de vida. Possui inteligência criativa que o impulsiona à pesquisa sobre si mesmo, o universo, o infinito e o átomo. Tudo isso o faz sentir-se como um deus poderoso. Entretanto, em contraposição, sabe que irá tornar-se pó. Este é o paradoxo com o qual deve lidar. Na sua dualidade, ele se encontra dentro e fora da natureza, possuindo um corpo de carne que também o faz viver, sentir dor e morrer. Assim, deve desafiar este temor da morte, resultante deste enfrentamento constante, mesmo tentando abafá-lo de outras formas, diferentemente dos animais inferiores onde esta consciência é substituída pelos instintos.

Cito, Kierkegaard à este respeito:

Toda a ordem das coisas me enche de uma sensação de angústia, desde o mosquito até os mistérios da encarnação; tudo me é inteiramente ininteligível, em especial minha própria pessoa. Grande, e sem limites é a minha tristeza (…)”.

A segunda possibilidade, para a superação do terror da morte, surge com o conceito do romantismo. Gerado sob o impacto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, de fins do século XVIII, o romantismo surgiu no início do século XIX. Aqui, o ser humano perdeu-se de Deus e portanto a transferência ocorre voltando-se para outro ser, desta vez “real”, que se torna objeto de adoração e amor. A espiritualidade sai do Céu e vem à Terra.

A transferência, seja religiosa ou não, está ligada às razões do viver. Nascemos e crescemos e ao adquirirmos consciência, nos perguntamos, como se preocupava Kant, qual é o nosso papel neste mundo. Quem somos? Por que estamos aqui? Qual é a nossa missão?

O objeto da transferência torna-se, portanto, uma fetichização para os anseios do ser humano no que se refere à sua sobrevivência e imortalidade. Mas o que significa transferência? Quais são seus aspectos? Como e quando ela ocorre?

Tratados de psicanálise a explicam. Segundo Alfred Adler, a transferência “é basicamente uma manobra ou tática pela qual o ser humano procura perpetuar o seu estilo de existência, que depende de uma continuada tentativa de despir-se do poder e colocá-lo nas mão do “outro”. Para Carl G. Jung, a transferência é “o fascínio por alguém ou algo a quem tentamos nos entregar, que pareça possuir todas as qualidades que não conseguimos concretizar em nós mesmos”. Jung percebeu que a compreensão da criação de símbolos era crucial para o entendimento da natureza humana. Ele, então, explorou as correspondências entre os símbolos que surgem nas lutas da vida dos indivíduos e as imagens simbólicas religiosas subjacentes e sistemas mitológicos e mágicos de muitas culturas e eras.

Para Erich Fromm: “a transferência reflete a alienação do homem”. Ele explica que a transferência, sob o ponto de vista psicanalítico, ocorre quando o homem escolhe um objeto (aqui falando sobre pessoas) no qual projeta todas as suas qualidades humanas: seu amor, sua inteligência e sua coragem, para superar seu sentimento de vazio interior e impotência. “Ao submeter-se a esse objeto, ele se sente em contato com suas próprias qualidades. Perder este objeto significa o perigo de perder a si mesmo. Esse mecanismo - a adoração idólatra de um outro ser, baseado no fato da alienação individual, é o dinamismo central da transferência, aquilo que dá à transferência sua força e sua intensidade.”

A transferência sempre é uma forma de regressão, pois adota um mundo adulterado, de controle automático e acrítico das circunstâncias externas. Mostra uma profunda rebelião contra a realidade e a insistência na zona da imaturidade. Ela pode ser considerada uma forma de fetichismo que exerce um controle limitado e ancora os nossos problemas.

Fetiche é uma palavra originada da palavra francesa fétiche e tem dois significados gerais:
1. objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto
2. objeto inanimado ou parte do corpo considerada como possuidora de qualidades mágicas ou eróticas.

Um fetiche pode estar relacionado com algo místico, representando um amuleto ou um ídolo, com poderes mágicos ou sobrenaturais. Alguns povos e tribos africanas possuem certos objetos fetiches, que são adorados pelo povo.

Existe igualmente o sentido do “fetichismo da mercadoria”, conceito atribuído a Karl Marx, que é uma idéia central do sistema econômico criado por ele. Marx indica que graças a esse fenômeno psicológico e social, os objetos /“produtos” parecem ganhar vontade própria sendo alvo de culto pelo ser humano. Desta forma, os indivíduos se comportam como objetos e os objetos se comportam como pessoas.

Karl Marx baseia-se na historia do personagem bíblico Moisés, que entre tantas aventuras, subiu ao Monte Sinai para se encontrar com Deus. Nesse momento, o povo cansado de esperar pela terra prometida, juntou seu ouro para criar a estátua de um animal, possivelmente um bezerro, para depois adorá-lo como um novo deus. Neste caso, o “bezerro” de ouro pode ser classificado como um objeto fetiche.

Eu poderia acrescentar que o mesmo fenômeno da transferência ocorre, igualmente, com os objetos materiais que nos cercam - produtos, aparelhos, gadgets, enfim os objetos do cotidiano.

O paradoxo da vida e o enfrentamento do medo da morte

Com a sociedade industrial tudo se transformou radicalmente e proliferaram-se os objetos criados pelo homem. Surgiram novas formas de produção, de consumo, de dependências e necessidades. O objeto tornou-se um mediador social e dotado de funções – o de ser utilizado e o de ser possuído. O estudo da sintaxe do objeto mostra que ele é arte, colecionável, presente e gadget, desempenhando um papel de protagonista na relação homem-objeto.

Os objetos desempenham um papel de reguladores de nossas angústias, nos tranquilizando afetivamente. O indivíduo teme sair para o universo poderoso que está “lá fora” e onde ele percebe o caos. Teme poder concretizar sua individualidade e teme a liberdade. Pretende a simbiose do ventre da mãe protetora. O fato é que, devido à inquietação do ser humano sobre a fatalidade da sua condição humana, ele busca sua transcendência. Portanto a essência da transferência para um objeto é transcender a própria mortalidade. Daí, estamos a um passo de fazer a mesma transferência, antes religiosa e depois para o “outro”, para os objetos que nos cercam ou que desejamos que nos cerquem. Sem percebermos, os mesmos mecanismos citados anteriormente, aqui ocorrem com os objetos-paixão ou objetos marginais abstraídos de sua função, também qualificados como objetos de coleção.

Neste caso, o objeto toma o sentido do ser amado, como algo criado por Deus e portanto eterno ou eternizável dentro da perspectiva da transferência.

A morte não deve ser confundida com uma passagem ou episódio mas ela envolve um processo que acompanha o ser humano durante todo o seu curso vital.

Relembrando as primeiras civilizações humanas, cito o nascimento da civilização egípcia, entre aproximadamente 4.000 e 3.000 a.C, onde esta sociedade era marcada por uma profunda religiosidade. Politeístas, adoravam diversos deuses: Amon-Ra, protetor dos faraós; Ptah, protetor dos artesãos; Thot, deus da ciência e protetor dos escribas; Ambis, protetor dos embalsamamentos; Maat, deusa da justiça, entre outros. Acreditavam em vida após a morte e no retorno da alma ao corpo, cultuavam os mortos e desenvolviam técnicas de mumificação para autopreservação.

 

Era comum que os faraós e as pessoas de maior poder aquisitivo fossem enterradas com dezenas de objetos de uso particular; como jóias, roupas, perfumes, mobília, até mesmo animas de estimação e escravos. Tudo isso era devidamente guardado em suas tumbas. Os egípcios acreditavam que a morte não era o fim da jornada. Sendo assim, eles teriam a necessidade de levar consigo todos os seus pertences em sua longa viagem rumo à outra vida.

 

Este costume mostra o apego dos egípcios aos seus objetos do dia a dia, que tinham a função de assegurar a continuidade existencial. Essa cultura perpetuou-se entre muitos outros povos que vieram a seguir e mesmo nossos contemporâneos levam consigo, por crença ou superstição, algum objeto querido enterrado junto ao seu corpo; como óculos, correntes e anéis, dependendo de sua mitologia pessoal.

 

Há portanto a transferência/ transcendência do indivíduo, em sua fantasia, para estes objetos ora míticos e fetichizados, assegurando ao indivíduo um discurso para si mesmo do seu valor perene.

 

Devemos lembrar que este discurso abrange tanto objetos contemporâneos quanto os objetos antigos e portanto colecionáveis.

 

Quem não conhece aquele apego à uma poltrona que pertenceu ao seu pai? Um relógio de bolso que foi do seu avô? Uma caixa de pó de arroz antiga de sua mãe? Canetas, óculos, pentes, leques, cristaleiras, escrivaninhas, cômodas; uma parafernália que muitas vezes nos toca mais fundo do que um novo iPhone ou uma TV ultra moderna  - com seus dias contados em nossas vidas. Eu mesma possuo um vitrine cheia de objetos antigos e seminovos, que celebram e perpetuam a minha existência e de toda a minha família.

 

As mitologias dos objetos se contrapõem e se complementam. A mitologia do objeto moderno carrega a ansiedade pelo futuro – o estar sempre à frente, ter poder e superioridade. Já a mitologia do objeto antigo, segundo Baudrillard, carrega a nostalgia das origens. Ambas sustentam o indivíduo a enfrentar o enigma da morte. A do objeto moderno procura valores atemporais e superação do mundo. A do objeto antigo, uma volta à célula mãe, à natureza, aos conhecimentos primitivos, às divindades, que por sua vez fantasiam a prova de sua eternidade.

 

 

Bibliografia


KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor, 1843.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia, 1844.
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano, 1849.
WAHl, Jean Andre. Études kierkegaardiennes, 1938.
MARX, Karl. O Capital, 2005.
Adler, Alfred. The Collected Clinical Works of Alfred Adler, 1898.
JUNG, Carl G. “Sete Sermões aos Mortos" e "A Função Transcendente"; estudo sobre os gnósticos, 1916.  
FROMM, Erick. To Have or to Be1976.