Desenho: Suzana M. Sacchi Padovano |
O TERROR DE MORRER E OS OBJETOS FETICHE
Este artigo aborda os aspectos ontológicos do
terror de viver, de morrer e do fenômeno da transferência psicanalítica que
ocorre através da fetichização dos seres. Investiga esta mesma transferência no
mundo dos objetos fetiche.
Falar da
vida e da morte é algo que pode parecer assustador. De fato o é. A morte
inspira medo desde o momento em que temos conhecimento e consciência dela. A
maioria das atividades humanas tenta evitar a fatalidade da morte; seja através
da religião, que nos promete a vida eterna e o paraíso; seja através da ciência,
com estudos cada vez mais avançados dentro da biotecnologia.
Um
pensamento budista nos instrui pensarmos no fato da morte todos os dias e não evitá-lo,
pois assim, quando ela chegar, estaremos preparados. Sob o ponto de vista da
psicologia, as neuroses de angústia e diferentes estados fóbicos ou até
depressivos suicidas demonstram no indivíduo o sempre existente medo da morte e
seu enfrentamento.
Este temor ocorre
como sentimento de autopreservação, escondido sob o manto da vigilância. Em
geral, vamos vivendo sem pensar muito no nosso fim, com o piloto automático
ligado, como se fossemos fisicamente imortais (vide o sucesso dos filmes dos
super heróis da Marvel e DC Comics). Sabemos que iremos morrer um dia (hoje atualizados
pelos cientistas, que logo após nascermos inicia-se o processo de
envelhecimento das células) mas temos sempre esperança que a morte vai levar
muito tempo para chegar e vamos aproveitando a vida, reprimindo este pensamento
negativo e amedrontador – pela nossa ignorância a respeito do que ela, de fato,
seja. Muitos de nós, dependendo de nossa cultura, já passamos por experiências
de quase morte, ou mesmo sofremos cirurgias nas quais fomos anestesiados e ao
voltarmos à consciência dizemos erroneamente – “foi como morrer, não senti nada(?)”.
Como diria o escritor Maurice
Blanchot: “Se é verdade que a experiência
da morte atravessa a existência humana do início ao fim, talvez, a morte ao
nosso alcance seja o que torna a vida possível, o que propicia ar, espaço,
movimento e alegria”.
Afirmam os
psicanalistas que o conceito de morte “é
um símbolo complexo, cujo significado irá variar de uma pessoa para outra e de
uma cultura para outra”. E não só, varia de intensidade dependendo do
processo evolutivo de cada um.
Pergunto:
“Como o ser humano transmuta e supera este temor da morte?
Existem
algumas possibilidades: A primeira delas vem do conceito judaico–cristão, na
crença da imortalidade com a continuação do nosso ser na “eternidade” – na
dimensão vulgarmente chamada de céu. Embalar esta crença, faz com que o homem saia
do seu paradoxo existencial. O ser humano tem uma identidade que o destaca de
outros seres da natureza. Possui um nome e uma história de vida. Possui
inteligência criativa que o impulsiona à pesquisa sobre si mesmo, o universo, o
infinito e o átomo. Tudo isso o faz sentir-se como um deus poderoso.
Entretanto, em contraposição, sabe que irá tornar-se pó. Este é o paradoxo com
o qual deve lidar. Na sua dualidade, ele se encontra dentro e fora da natureza,
possuindo um corpo de carne que também o faz viver, sentir dor e morrer. Assim,
deve desafiar este temor da morte, resultante deste enfrentamento constante,
mesmo tentando abafá-lo de outras formas, diferentemente dos animais inferiores
onde esta consciência é substituída pelos instintos.
Cito,
Kierkegaard à este respeito:
“Toda a ordem das coisas me enche de uma
sensação de angústia, desde o mosquito até os mistérios da encarnação; tudo me
é inteiramente ininteligível, em especial minha própria pessoa. Grande, e sem
limites é a minha tristeza (…)”.
A segunda possibilidade,
para a superação do terror da morte, surge com o conceito do romantismo. Gerado sob o
impacto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, de fins do século
XVIII, o romantismo surgiu no início do século XIX. Aqui,
o ser humano perdeu-se de Deus e portanto a transferência ocorre voltando-se para
outro ser, desta vez “real”, que se torna objeto de adoração e amor. A
espiritualidade sai do Céu e vem à Terra.
A
transferência, seja religiosa ou não, está ligada às razões do viver. Nascemos
e crescemos e ao adquirirmos consciência, nos perguntamos, como se preocupava
Kant, qual é o nosso papel neste mundo. Quem somos? Por que estamos aqui? Qual
é a nossa missão?
O objeto da
transferência torna-se, portanto, uma fetichização para os anseios do ser
humano no que se refere à sua sobrevivência e imortalidade. Mas o que significa
transferência? Quais são seus aspectos? Como e quando ela ocorre?
Tratados de
psicanálise a explicam. Segundo Alfred Adler, a transferência “é basicamente uma manobra ou tática pela
qual o ser humano procura perpetuar o seu estilo de existência, que depende de
uma continuada tentativa de despir-se do poder e colocá-lo nas mão do “outro”. Para
Carl G. Jung, a transferência é “o
fascínio por alguém ou algo a quem tentamos nos entregar, que pareça possuir
todas as qualidades que não conseguimos concretizar em nós mesmos”. Jung percebeu que a compreensão da criação
de símbolos era
crucial para o entendimento da natureza humana. Ele, então, explorou as correspondências
entre os símbolos que surgem nas lutas da vida dos indivíduos e as imagens
simbólicas religiosas subjacentes e sistemas mitológicos e mágicos de muitas culturas e eras.
Para Erich
Fromm: “a transferência reflete a
alienação do homem”. Ele explica que a transferência, sob o ponto de vista
psicanalítico, ocorre quando o homem escolhe um objeto (aqui falando sobre
pessoas) no qual projeta todas as suas qualidades humanas: seu amor, sua
inteligência e sua coragem, para superar seu sentimento de vazio interior e
impotência. “Ao submeter-se a esse
objeto, ele se sente em contato com suas próprias qualidades. Perder este
objeto significa o perigo de perder a si mesmo. Esse mecanismo - a adoração
idólatra de um outro ser, baseado no fato da alienação individual, é o
dinamismo central da transferência, aquilo que dá à transferência sua força e
sua intensidade.”
A
transferência sempre é uma forma de regressão, pois adota um mundo adulterado,
de controle automático e acrítico das circunstâncias externas. Mostra uma
profunda rebelião contra a realidade e a insistência na zona da imaturidade.
Ela pode ser considerada uma forma de fetichismo que exerce um controle
limitado e ancora os nossos problemas.
Fetiche é uma palavra originada da
palavra francesa fétiche e tem dois
significados gerais:
1.
objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto
2. objeto inanimado ou parte do corpo considerada como
possuidora de qualidades mágicas ou eróticas.
Um fetiche pode estar relacionado com algo místico,
representando um amuleto ou um ídolo, com poderes mágicos ou sobrenaturais.
Alguns povos e tribos africanas possuem certos objetos fetiches, que são
adorados pelo povo.
Existe
igualmente o sentido do “fetichismo da mercadoria”, conceito atribuído a Karl
Marx, que é uma idéia central do sistema econômico criado por ele. Marx indica
que graças a esse fenômeno psicológico e social, os objetos /“produtos” parecem
ganhar vontade própria sendo alvo de culto pelo ser humano. Desta forma, os
indivíduos se comportam como objetos e os objetos se comportam como pessoas.
Karl
Marx baseia-se na historia do personagem bíblico Moisés, que entre tantas
aventuras, subiu ao Monte Sinai para se encontrar com Deus. Nesse momento, o
povo cansado de esperar pela terra prometida, juntou seu ouro para criar a
estátua de um animal, possivelmente um bezerro, para depois adorá-lo como um
novo deus. Neste caso, o “bezerro” de ouro pode ser classificado como um objeto
fetiche.
Eu poderia
acrescentar que o mesmo fenômeno da transferência ocorre, igualmente, com os objetos
materiais que nos cercam - produtos, aparelhos, gadgets, enfim os objetos do cotidiano.
O paradoxo da vida e o enfrentamento do medo
da morte
Com a
sociedade industrial tudo se transformou radicalmente e proliferaram-se os
objetos criados pelo homem. Surgiram novas formas de produção, de consumo, de
dependências e necessidades. O objeto tornou-se um mediador social e dotado de
funções – o de ser utilizado e o de ser possuído. O estudo da sintaxe do objeto
mostra que ele é arte, colecionável, presente e gadget, desempenhando um papel
de protagonista na relação homem-objeto.
Os objetos
desempenham um papel de reguladores de nossas angústias, nos tranquilizando afetivamente.
O indivíduo teme sair para o universo poderoso que está “lá fora” e onde ele percebe
o caos. Teme poder concretizar sua individualidade e teme a liberdade. Pretende
a simbiose do ventre da mãe protetora. O fato é que, devido à inquietação do ser
humano sobre a fatalidade da sua condição humana, ele busca sua transcendência.
Portanto a essência da transferência para um objeto é transcender a própria
mortalidade. Daí, estamos a um passo de fazer a mesma transferência, antes
religiosa e depois para o “outro”, para os objetos que nos cercam ou que
desejamos que nos cerquem. Sem percebermos, os mesmos mecanismos citados
anteriormente, aqui ocorrem com os objetos-paixão ou objetos marginais
abstraídos de sua função, também qualificados como objetos de coleção.
Neste caso,
o objeto toma o sentido do ser amado, como algo criado por Deus e portanto
eterno ou eternizável dentro da perspectiva da transferência.
A morte não deve ser confundida
com uma passagem ou episódio mas ela envolve um processo que acompanha o ser
humano durante todo o seu curso vital.
Relembrando as primeiras civilizações humanas,
cito o nascimento da civilização egípcia, entre aproximadamente 4.000 e 3.000
a.C, onde esta
sociedade era marcada por uma profunda religiosidade. Politeístas, adoravam diversos deuses: Amon-Ra,
protetor dos faraós; Ptah, protetor dos artesãos; Thot, deus da ciência e
protetor dos escribas; Ambis, protetor dos embalsamamentos; Maat, deusa da
justiça, entre outros. Acreditavam em vida após a morte e no retorno da alma ao
corpo, cultuavam os mortos e desenvolviam técnicas de mumificação para autopreservação.
Era
comum que os faraós e as pessoas de maior poder aquisitivo fossem enterradas
com dezenas de objetos de uso particular; como jóias, roupas, perfumes,
mobília, até mesmo animas de estimação e escravos. Tudo isso era devidamente
guardado em suas tumbas. Os egípcios acreditavam que a morte não era o fim da
jornada. Sendo assim, eles teriam a necessidade de levar consigo todos os seus
pertences em sua longa viagem rumo à outra vida.
Este
costume mostra o apego dos egípcios aos seus objetos do dia a dia, que tinham a
função de assegurar a continuidade existencial. Essa cultura perpetuou-se entre
muitos outros povos que vieram a seguir e mesmo nossos contemporâneos levam
consigo, por crença ou superstição, algum objeto querido enterrado junto ao seu
corpo; como óculos, correntes e anéis, dependendo de sua mitologia pessoal.
Há
portanto a transferência/ transcendência do indivíduo, em sua fantasia, para
estes objetos ora míticos e fetichizados, assegurando ao indivíduo um discurso
para si mesmo do seu valor perene.
Devemos
lembrar que este discurso abrange tanto objetos contemporâneos quanto os objetos
antigos e portanto colecionáveis.
Quem
não conhece aquele apego à uma poltrona que pertenceu ao seu pai? Um relógio de
bolso que foi do seu avô? Uma caixa de pó de arroz antiga de sua mãe? Canetas,
óculos, pentes, leques, cristaleiras, escrivaninhas, cômodas; uma parafernália
que muitas vezes nos toca mais fundo do que um novo iPhone ou uma TV ultra moderna
- com seus dias contados em nossas
vidas. Eu mesma possuo um vitrine cheia de objetos antigos e seminovos, que
celebram e perpetuam a minha existência e de toda a minha família.
As
mitologias dos objetos se contrapõem e se complementam. A mitologia do objeto
moderno carrega a ansiedade pelo futuro – o estar sempre à frente, ter poder e
superioridade. Já a mitologia do objeto antigo, segundo Baudrillard, carrega a
nostalgia das origens. Ambas sustentam o indivíduo a enfrentar o enigma da
morte. A do objeto moderno procura valores atemporais e superação do mundo. A do
objeto antigo, uma volta à célula mãe, à natureza, aos conhecimentos
primitivos, às divindades, que por sua vez fantasiam a prova de sua eternidade.
Bibliografia
KIERKEGAARD, Søren. Temor
e Tremor, 1843.
KIERKEGAARD, Søren. O
Conceito de Angústia, 1844.
KIERKEGAARD, Søren. O
Desespero Humano, 1849.
WAHl,
Jean Andre. Études kierkegaardiennes,
1938.
MARX, Karl. O
Capital, 2005.
Adler, Alfred. The
Collected Clinical Works of Alfred Adler, 1898.
JUNG, Carl
G. “Sete Sermões aos Mortos" e "A Função Transcendente";
estudo sobre os gnósticos, 1916.