segunda-feira, 9 de março de 2015

O FETICHE DO OBJETO ANTIGO








O FETICHE DO OBJETO ANTIGO


     Folheando revistas de arquitetura e decoração, pode-se observar como se configura o mobiliário atual. A leitura que fazemos desta conformação, inclusive espacial, nos fornecerá a imagem das estruturas familiares e sociais de nossos dias. Percebe-se que na sua grande maioria, os espaços contemporâneos ainda permanecem separados e unifuncionais tendendo a uma utilização específica das diversas funções familiares (1). O espaço para cozinhar, para comer, para receber visitas, para dormir, para a higiene. Estes tendem a ser bastante preenchidos e em muitos casos vê-se a acumulação barroca com tinturas museológicas.


Espaço multifuncional contemporâneo aberto (1).


Espaço multifuncional contemporâneo | Loft (1).

Sala de jantar com cadeiras Luis XVI, animais empalhados, cariátides e um candelabro de 
cristal italiano do século XVIII, além de outros adornos de diferentes épocas e estilos.


      Os móveis e objetos decorativos se olham e estabelecem um diálogo, muitas vezes mais simbólico do que funcional. Esta estrutura tende a organizar-se em relação à um eixo simétrico, hierárquico, de tradição e ordem, refletindo igualmente aspectos afetivos da família. Ainda há espaço para buffets, armoires, vitrines, camas com dossel, grandes mesas de jantar, espelhos gigantes e imensos candelabros de cristal, entre outras peças.  A organização patriarcal burguesa está presente, toda estruturada e fechada em si. Como cita Baudrillard (2)

domesticam-se as culturas dos objetos técnicos por meio dos objetos antigos.


Ambiente com arranjo espacial totalmente preenchido com mobiliário e objetos. 

     
     Aos objetos domésticos da contemporaneidade, intercalam-se os objetos antigos que podem ser de diferentes épocas e estilos, trazidos por herança ou gosto e reflexo do desejo de permanência e imortalidade, senão pela procura de status e do apelo aristocrático. Livros raros antigos ao lado de aparelhos de som altamente tecnológicos, cabeças de bichos empalhados ao lado de aparelhos de ar condicionado e por aí seguimos.

     Assim, detalhando mais esta afirmação, podemos dizer que o objeto antigo possue uma história. Ele não deixa de ser decorativo nem funcional mas sua maior função é o que ele significa: o tempo. Ele existe na ambiência como signo de nascimento e origem. Busca-se nele o conforto emocional e a certeza da continuidade de nossa existência. Ele seria o equivalente ao confort food.


Ambiente contemporâneo com cama com dossel antigo, ladeada por espelhos e
acessórios asiáticos.

Ambiente clássico renovado com candelabro de cristal estilo antigo
e cadeiras modernas | Desg. Paul Goldman.


Ambiente e quadro contemporâneos com aparador em estilo Palladiano


Ambiente e acessórios contemporâneos com sofá Luis XV.


Ambiente contemporâneo neo-clássico com acessórios modernos e 
poltrona Luis XVI.

Armoir francês circa 1800 com cadeira Luis XV e candelabro de cristal
 e reflexo no espelho de cama Luis XV.
     
    Baudrillard explora bem este assunto e coloca uma questão fundamental: de onde surge esta necessidade da posse de algo antigo, seja ele um velho móvel de família, um objeto “autêntico”, artesanal? Parece que a resposta encontra-se na necessidade de aculturação, seja por parte dos povos desenvolvidos em busca de signos do passado e fora do seu sistema cultural, seja por parte dos povos subdesenvolvidos à procura da atualidade da industrialização e da tecnologia. Tudo resume-se a Cronos - o fascínio pela busca do tempo perdido.


 Cadeiras clássicas Louis XV.

    
     O objeto antigo é auto referente e portanto “autêntico”. Ele permaneceu no tempo, ele é a prova de sua própria existência, em contraposição ao objeto moderno que existe somente no tempo presente, não tendo ainda adquirido seu status signico de mito. O objeto moderno é funcional, prático eficiente ou tecnológico, mas isto não garante a sua existência nos “retratos de familia”(3). Um ambiente ascético, clean, do tipo monástico, pode ser bonito numa foto mas quando o vivenciamos no dia a dia torna-se árido, descartando memórias e afetos.


ORIC - cadeira contemporânea preta inspirada por Polyhedron Origami  | Design: Yuji Fujimura. 

Ambiente minimalista contemporâneo |  Casa Kazanawa Takuro.

Ambiente minimalista contemporâneo | The Ultralinx.

Ambiente minimalista contemporâneo | Casa Toshiro | Arq. Tadao Ando.

    
     Como diz a famosa frase “Freud explica”, o desejo de posse de um objeto antigo relaciona-se igualmente ao colecionismo que por sua vez afilia-se à regressão narcisista. Impõem-se uma necessidade de conhecimento das origens, de ter tido um pai e uma mãe. Esta regressão para as raízes simboliza a volta ao seio materno.

   Quanto à autenticidade, ela está ligada ao amor por aquilo que foi criado com a mão, pela singularidade da peça, pela origem da obra, com nome, data e assinatura. O objeto autêntico congela o ato criativo em si próprio e pertence não somente ao autor como ao seu possuidor/fruidor.


Escultura de mármore de mulher circa 120-140 CE. Provavelmente de Kenchreai. 
Museu Arqueológico de Coríntia Antiga, Grécia.

      O fetiche do objeto antigo é ter atributos mágicos ou simbólicos mas somente para quem o possui. É um discurso subjetivo, feito para si próprio, onde se manifesta a angústia pela volta à infância, às origens ou ao útero.


Retrato francês antigo.

Créditos:Autora: Suzana Mara Sacchi Padovano
Data: 6/03/2015
Fotos: Pinterest.com
Máscara inicial: antiga máscara de madeira japonesa
           




(1) Observa-se o recente surgimento de novas estruturas espaciais abertas e mudança nas relações do indivíduo com a família  e sociedade.
(2) BAUDRILLARD, Jean. Le système des objets. France: Edition Gallimard, 1968
(3) BAUDRILLARD, Jean. Le système des objets. France: Edition Gallimard, 1968

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